...ESTOU ADIANDO O MOMENTO DE ESCREVER
... estou adiando o momento de escrever. A perspectiva me assusta. Gostaria de estar inspirado, de coroar com êxito mais um ano nesta busca do irrisório no cotidiano de cada um
A epígrafe faz parte de “A última crônica”, na qual Fernando Sabino, ao mesmo tempo em que apresenta as características da crônica, deixa claro que até para quem está acostumado a lidar com as palavras, para quem tem nelas a matéria-prima da sua profissão, escrever é um ato que traz preocupações, mexe com os sentimentos, pode assustar:
A caminho de casa, entro num botequim da Gávea para tomar um café junto ao balcão. Na realidade estou adiando o momento de escrever. A perspectiva me assusta.
Gostaria de estar inspirado, de coroar com êxito mais um ano nesta busca do irrisório no cotidiano de cada um. Eu pretendia apenas recolher da vida diária algo de seu disperso conteúdo humano, fruto da convivência, que a faz mais digna de ser vivida. Visava ao circunstancial, ao episódico. Nesta perseguição do acidental, quer num flagrante de esquina, quer nas palavras de uma criança ou num incidente doméstico, torno-me simples espectador e perco a noção do essencial. Sem mais nada para contar, curvo a cabeça e tomo meu café, enquanto o verso do poeta se repete na lembrança: “assim eu quereria o meu último poema”. Não sou poeta e estou sem assunto. Lanço então um último olhar fora de mim, onde vivem os assuntos que merecem uma crônica. (Sabino, 1980: 40)
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